Coração de mãe - Raimundo Ivan de Melo


Maria das Dores, com uma criança nos braços, estendeu a mão pedinte ao motorista de um carro importado parado no sinal vermelho. Os meninos corriam para os outros

Carros e repetiam o mesmo gesto da mãe. Dentro do veículo, um casal. Rapidamente a janela foi fechada. O homem virou o rosto e a mulher, comovida e cheia de indignação, comentou:


-Expor assim as crianças. É desumano! Isso não é mãe!

O homem, com vasto conhecimento das relações humanas e sociais, completou:

-Ela só vê seus interesses e explora nossa sensibilidade à custa do sofrimento dessas crianças inocentes.

Passavam por ali todos os dias. Ela, psicóloga; ele, sociólogo. Eram professores universitários e não tinham filhos. Moravam num luxuoso condomínio do outro lado da avenida.

A mendiga voltou ao seu abrigo debaixo do viaduto. Ali era sua morada. Dali ela observava o movimento dos carros e uma realidade muito mais distante da sua. Acolheu os meninos para dormirem. Em momentos de solidão, Das Dores cantava para as crianças, elas gostavam. Romário, o mais velho, Bebeto e Gisele, ainda de colo. Fora o pai que os batizara e depois de sua morte, Das Dores jurou que não teria outro homem, seu coração seria só de seus filhos. Isso lembrava uma música do tempo em que fora feliz: “Meu coração eu não dou, porque não posso arrancar...”

Quando as moedas ficaram escassas e a fome insuportável, pensou naquela música e em com alimentar as crianças. Naquela noite as crianças comeram carne. A pobre mãe cortou em fatias suas panturrilhas e serviu-as no jantar. Gisele, com seus dentes pequeninos, comeu em pedacinhos. Romário comia com voracidade e até furtava do prato de Bebeto. A mãe só observava, com satisfação,

a pequena Gisele sorrir mordiscando pedaços de panturrilha. “Não me farão falta”, pensou.

Pela manhã, Das Dores sentiu dificuldade para se dirigir até os carros. Sentia uma fisgada onde existiam panturrilhas. Novamente o casal estava ali e a mulher, plena de convicção, disse:

-Cada vez sinto mais raiva dessa mulher. Coitadas desses meninos.

A mendiga, que não recebera uma só moeda, não se abatia. A refeição estava garantida. Serviu seus pés no jantar, claro que antes lavou-os bem. Achou muito prazeroso ver seus filhos se fartarem, encantou-se vendo Gisele roer aqueles pequenos ossos de seus pés, que eram menores ainda diante da felicidade dos filhos.

Não podia mais ir até os carros, por isso ficava sentada sob o plástico, com um cobertor sobre as pernas. Os filhos faziam o trabalho. Estava quieta, mas se percebia satisfação em seu rosto quando olhava para as crianças. Achava-os até mais gordinhos.

Perto de anoitecer, Das Dores já ficava imaginando qual parte do corpo serviria no jantar das crianças. Ela se contentava com um cigarrinho e umas doses de cachaça, “porque ninguém é de ferro”, pensava.

Uma das pernas foi servida naquela noite e rendeu uma bela sopa que os alimentou por três dias. No quarto, os meninos já se antecipavam e sugeriam que parte do corpo da mãe iriam devorar na próxima refeição. Comeram a outra perna da dedicada mãe, que não se fazia de rogada, pois o sentimento materno a envolvia mais que a dor. Aprendera com sua falecida mãe

Que devia, acima de tudo, zelar da saúde de seus filhos; poderia faltar tudo para a mãe, mas nada faltaria aos filhos. Nada a engrandeceria tanto quanto o bem-estar das crianças.

Os que por ali passavam em seus carros tinham seu modo próprio de ver a coisa. Um homem de cavanhaque, paletó e óculos de grau comentou com seus companheiros:

- Essa família deveria estar exposta num outdoor, atestando a ganância e a coisificação do ser humano promovidas pelo capitalismo selvagem.

Seus amigos elogiaram o discurso e a sensibilidade política do líder, pois para isso eram pagos, mas se entreolharam confusos, ao verem crianças que, apesar de sujas, eram gordinhas, de bochechas rosadas. A mãe, entretanto, estava em flagelo, distraída, olhando as crianças.

Outro dia, comeram as vísceras de Das Dores Bebeto e Gisele, que tinham dentes pequenos , comeram-nas cozidas. Romário preferiu-as assadas. A mãe se divertia se divertia vendo a menina comendo e esticando aquele estranho alimento.

As crianças não sentiam mais a fome de outrora, por isso não mais se interessavam tanto em mendigar as moedas dos motoristas. Agora passavam mais tempo brincando, o que alegrava Das Dores. Anoitecia e eles se aproximavam da mãe, que já imaginava, sem ressentimentos, seus dentes morderem-lhe as carnes.

O casal esteve ali em seu carro importado. A mulher indignada não se conteve e gritou:

-Você não sabe ser mãe! Tudo o que elas precisam é de um abraço!

Das Dores agora ficava deitada, imóvel, coberta por um lençol, enquanto as crianças corriam. Não estendia mais a mão sequer, pois já não as tinha, nem os braços, pernas, nádegas, seios ou vísceras. Tinha coração. Coração de mãe. Gisele estava no seu colo, como sempre; Bebeto, do lado e Romário tocava o corpo magro de Das Dores, como se escolhesse o que comer do pouco que restara daquele corpo mutilado. A mãe, que o observava atenta, alertou:

-O coração não, escolhe outra parte.

-Uma vez a senhora disse que seu coração era nosso.- respondeu o garoto.

- Sim, mas hoje não. Sem ele eu morro e não poderei cuidar de vocês.

Nessa noite, os meninos esqueceram a fome, esperariam o dia seguinte,quando estariam mais famintos. Ouviram dizer que coração de mãe era especial e enorme, e sabiam que a mãe não lhes negaria aquele órgão vital. Parou então aquele conhecido carro importado. Dele, o casal de professores olhavam estupefatos.

Das Dores, deitada, tragava seu cigarrinho, que Bebeto segurava. Gisele se distraía com os pontos de fumaça que saíam por várias partes do corpo da mãe.

-Ela não tem coração! Não valoriza a sorte que tem, enquanto umas dariam tudo para poder ter um filho. – desabafou a psicóloga, num tom confessional, dirigindo-se ao marido.

Depois de olhar fixamente para Das Dores, o homem virou-se para a esposa e manteve-se em silêncio, mas o brilho de uma lágrima contida, em seus olhos, falavam mais que qualquer palavra.

RAIMUNDO IVAN DE MELO

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