Ou uma coisa ou outra... - Vilemar Costa


Há um contemplar o abismo.

Há um abismo pendente do corpo estendido que se revira em direção a ele por que é necessário chegar lá.

É necessário chegar por que é preciso levantar-se e cumprir a velha nova rotina que se processa desde há alguns anos.

E lá estava eu prestes a chegar, sofrida e sofregamente. Arrasto-me na cama vexada e enxovalhada sem saber o porquê de tão doloso sofrer.

É sempre a mesma questão : que força estranha move-me a sempre e sempre, repetir e repetir, um dia atrás do outro, a mesma cena...

Só sei que há alguns anos não sou eu mesmo. Não me reconheço quando por fugazes instantes num lapso de tempo entre uma nuvem cinza do pensar e outra nuvem vazia, revejo-me tempos atrás, jovem de carreira universitária brilhante, uma bela esposa, amada e amante, sonhos e
desejos e esperanças a se amontoarem, um bebê.

um brusco engasgue me traz à realidade ...

Preciso sair da cama, penso nisso e esforço-me a cumprir essa vontade fraca e urgente, desde os primeiros albores do dia, pois também sei que em breve o estomago revolto precipitar-se-á pela
boca em golfadas verdes pastosas.

É o inicio da síndrome.

O sol se torna imenso a invadir o quarto e ainda não precipitei-me do abismo do estrado da cama, nessa luta que travo não sei mais desde quando, se desde o inico da madrugada ou desde o fim
da noite passada.

Num átimo ressurge a pergunta fatídica e amarga, mais amarga que a vontade incontrolável que começa a se apossar de minha boca seca, de meu corpo trêmulo, de minhas mãos suadas: que força estranha tem me empurrado pelas manhãs destes ultimos anos, que necessidade me conduz a provar do mesmo cálice ardente e rascante sempre e sempre, mesmo sabendo que tudo se repetirá novamente, os frêmitos, os tropeçares, as quedas, as noites de desmaio, e a
incansavel luta para erguer-me da cama, antes que o vômito a inunde.

E ao erguer-me o espelho reproduz o ser fantasmagórico que não me reconheço. Já o era para ter retirado desse quarto, mas essa lembrança só ocorre quando desperto e luto para percorrer o
quilométrico caminho ligado por doze passos entre a beirada da cama e o banheiro.

Sei que em breve tudo voltará ao normal, basta-me vomitar, nausear-me, respingar os olhos, aguar a boca e preparar-me para o primeiro gole.

Tudo se resolverá após o primeiro gole, que invariavelmente retornará, se não de todo, mas uma porção golfada virá ao chão, preparando o deslizar mais suave do segundo trago.

E se esse segundo se segura no estomago revolvido, o mundo começará a adquirir outra feição, menos cinza, menos sintomático, menos tremulo.

Talvez ganhe até uma côr antes que se esvazie o frasco do elixir...

Não sei.

Rezas, mandingas, promessas, juras, hospitalizações, internações, até agora de nada adiantaram.

O outro lapso no tempo permite que eu me pergunte :

- Será que não estou ainda imerso num grande sonho e que em breve despertarei e o mundo será cheio de cores, de sons de cheiros inebriantes ???

Não importa se poderei dizer que o sonho acabou, o momento agora requer o esforço de assomar o abismo da lateral da cama que me separa do chão úmido e frio e percorrer a maratona dos doze passos até o banheiro e dele sair para sentar-me à porta de uma geladeira rescendendo a bolor, azedo e fedido, para iniciar o ritual que me reconduzirá à normalidade de não mais tremer, vomitar, ansiar, suar frio em bicas.

Vencerei esta vez, porém quantas mais vencerei e quantas mais virão a serem vencidas...

Preciso dar um basta nisso, preciso descobrir o que me arrasta sempre ao mesmo despertar no alvor matinal.

Já ouvi falar certa vez que há saída, e quando busco perceber na lembrança qual seja, o instante fugaz de lucidez me devolve ao esforço de erguer, caminhar, golfar, regurgitar, ingerir
e recomeçar...

Ah vida real, como és cruel! Que sentido trazes, que partido tomas!

Contudo hoje darei termo a tudo isso e não será outra promessa ou jura fingida pois hei de buscar a saída para esse remoinho que me assola.

Ligarei para onde me ofertaram ajuda, estenderei a mão e deixar-me-ei conduzir.

Contudo só após despegar-me da porta da geladeira e do copo pegajoso que jaz colado entre as duas mãos em tremor.

Mas que farei o telefonema juro que farei...

Preciso apenas parar de contemplar esse abismo que se faz entre o estrado da cama, o chão frio e úmido, e dar o primeiro passo para a vida.

Ou desligar a camera em que roda esse mesmo filme já há alguns anos, de uma só vez.

Ou uma coisa ou outra...



Francisco Vilemar Ferreira Costa

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