Igarapé - Adriana Costa


Morávamos com nossos padrinhos e o filho deles, Felipe, numa pequena chácara num cinturão de mata vizinha à cidade de Belém. Acordei cedo e fui tomar café com minha irmã Cecília e com Felipe. Nós três éramos adolescentes e como tal bagunceiros e brincalhões. Mas neste dia eu estava um pouco retraída, pensativa sem motivo aparente. Enquanto Felipe ainda tomava o seu café, Cecília e eu pegamos nossos cadernos e livros e saímos para aula.

Íamos a pé por caminhos de terra batida no meio da mata de vegetação amazônica. Árvores altas, ervas, muitas trepadeiras, cipós descendo das árvores, flores silvestres que caíam pelo chão e nas águas dos igarapés onde, muitas vezes, nos banhávamos antes de voltar para casa. Felipe estudava no centro da cidade e nós duas com a população mais humilde, mas gostávamos de seguir aquele caminho todos os dias.

Nesta manhã, como eu estava sentindo-me ansiosa, mesmo sendo uma aluna aplicada, convenci facilmente Cecília a não ir à aula. Fomos nos banhar num igarapé. Deixamos os cadernos e os uniformes na margem e pulamos alegres naquela água fria e cristalina. A mata era muito fechada ao redor, um lugar de beleza inacreditável com cheiro de mato amassado. O sol iluminava, por entre as folhagens, exatamente o centro daquela água azul. Brincamos nadando atrás de peixinhos que iam para o fundo, podíamos ver a areia branca, mas não conseguíamos chegar até lá por causa da profundidade, a pressão da água nos empurrava pra cima. Chamei minha irmã e disse:

– Cecília, vamos pegar bastante ar e mergulhar o mais fundo que pudermos! – Eu queria tocar a areia no fundo do igarapé.

Cecília sorriu e concordou com a cabeça. Enchemos nossos pulmões de ar e mergulhamos até não poder mais. Parecíamos estar dentro de um imenso aquário. Então percebi que minha irmã estava ficando sem ar, ela começou a nadar na direção da superfície o mais rápido que conseguia. Eu também já estava bebendo água e sentia que ia me afogar. De repente, não vi mais nada, tudo ficou escuro como adormecer sem ter sonhos.

Acordamos na margem do igarapé. Pegamos nossas coisas, nos vestimos e não trocamos nenhuma palavra sobre o que aconteceu. Fiquei com medo de falar, mas acreditei que minha irmã foi mais forte que eu e, apesar de ser menor, ela me salvou. Voltamos em silêncio.

Quando chegamos em casa, coloquei os cadernos sobre a cama e vi que Felipe já estava dormindo. Imaginamos que nossos padrinhos, Dona Josefina e senhor Armando, também já estariam. Era noite. Olhei para minha irmã e sorri, ela me correspondeu e isso me deu um alívio imediatamente. Deitamos-nos mais tranqüilas.

Pela manhã seguiria a mesma rotina, levantar, tomar café e ir para aula. Mas alguma coisa estava diferente naquela manhã. Vestimo-nos e nos sentamos à mesa. Nossos padrinhos não estavam em casa e Felipe tinha um ar de preocupação. Perguntei o que estava havendo e ele não respondeu, sequer olhou para mim ou para Cecília.

Mesmo achando estranho o comportamento de Felipe, sentei à mesa. Ele nem tocou no café, pegou sua mochila e saiu. Eu peguei a chaleira servi minha irmã e depois me servi. Levantei para pegar o pão e minha irmã disse:

– Regina, olhe para sua cadeira! – Olhei e vi que estava com o assento molhado. Eu não estava molhada e não percebi se a cadeira estava molhada quando me sentei. Não tinha sentido nada. Achei estranho e ao voltar para a mesa, lá estavam mais pegadas molhadas pelo chão. Fiquei assustada e Cecília também. O que estava acontecendo?

Havia água ainda pelo corredor até chegar ao quarto e por onde passávamos deixávamos um rastro de água pelo chão, pelos móveis, em tudo que tocávamos. Cecília começou a chorar e eu tentei conter meu desespero que estava só aumentando. Deitamos juntas na minha cama, abraçadas e esperando que os pais de Felipe chegassem para nos dizer alguma coisa, se eles também sabiam o porquê daquela água, se havia algum cano vazando... Embora procurássemos uma resposta racional para o que estava acontecendo, alguma coisa nos assustava e não conseguimos sair para ir à aula. Estávamos com muito medo.

Então nossos padrinhos chegaram. Dona Josefina estava chorando muito e seu marido também se mostrava abatido, com os olhos vermelhos. Corremos em direção a eles, deixando um rastro de água atrás de nós, mas nem nos olharam. Passaram entre nós duas e foram até nosso quarto. Então ouvi Dona Josefina dizer:

– Querido, veja, as camas de Regina e de Cecília estão molhadas! Meu Deus! O que significa isso, Armando?

Não ouvimos mais nada, pegamos na mão uma da outra e saímos correndo dali, chorando. Paramos no meio da mata e nem percebemos como chegamos até lá. Só eu conseguia falar no meio daquela emoção totalmente nova para nós.

– E agora, Cecília? O que faremos agora? – E choramos assim abraçadas por um tempo que eu não saberia determinar.

Ainda abraçada à minha irmã, sentíamos-nos cada vez mais líquidas, as roupas encharcadas, a terra sob nossos pés virava uma lama que aos poucos formava uma poça de água. Já não tínhamos pés e nem pernas ao anoitecer. A água em que mergulhávamos era doce. Não eram as lágrimas do nosso desespero. Ao redor ouvíamos os barulhos da mata, dos bichos pisando as folhas, pássaros noturnos, insetos e cobras se arrastando. Pouco a pouco perdíamos o medo e uma paz nos invadia. Olhávamos uma para a outra, já submersas até as axilas e sorríamos.

Os raios de sol penetravam as folhagens quando vi um reflexo brilhar antes do último piscar de olhos de Cecília.

Acordei com uma sensação de afogamento, morte, angústia... Sentei-me na cama e toquei meu rosto, cruzei os braços em frente ao peito como se me abraçasse. A cama de Cecília estava vazia. Lembrei-me que ela fora passar o fim de semana com nossos pais no interior do estado e eu fiquei fazendo companhia à madrinha, sempre nos revezávamos para visitar nossos pais. Senti-me aliviada.

Troquei de roupa, penteei os cabelos e ao sair do quarto olhei para trás, para o chão... Estava molhado...

Adriana da Silva Costa

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